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Com quantos POVs se faz uma história? #2

  • thaisyounesco
  • 4 de ago.
  • 7 min de leitura

Com quantos POVs se faz uma história? #2

Estou muito feliz em ver tantas pessoas acompanhando a Corte da Narrativa! Quando criei o clube, minha intenção era compartilhar conteúdos sobre escrita de forma mais íntima, mesmo que isso significasse alcançar poucas pessoas. Mas, para minha surpresa e alegria, já somos quase 100 membros!

 

Há duas semanas, conversamos sobre críticas negativas e avaliações e aproveitamos para introduzir o tema da microedição, que é essencial para qualquer escritor.


Hoje nós vamos falar sobre Pontos de vista. 

 

Parece simples, mas escolher o ponto de vista de uma história é como uma trilha cheia de armadilhas e você vai cair em alguma se não prestar atenção.

Muita gente acha que basta decidir entre narrar em primeira ou terceira pessoa. Mas o buraco é mais embaixo. Boa parte dos escritores diz usar a primeira pessoa, mas escorrega em recursos típicos da terceira. Narrar pela visão de um personagem parece intuitivo até o momento em que você entende, de fato, o que isso exige. É aí que você descobre o quão desafiador pode ser manter a consistência. 

 

Vou citar brevemente o ponto de vista e o tempo verbal, porque se a gente parar pra destrinchar tudo o que cada um envolve, a gente fica doidinho. É POV, tempo, nível de acesso à consciência do personagem, consistência... Dá pra escrever uma edição inteira só sobre isso (e talvez a gente escreva mesmo). Por ora, vamos entender a base: 

Na primeira pessoa, quem conta a história é o próprio personagem, geralmente o protagonista. É o famoso “eu”. Você está dentro da mente dele. O leitor só sabe o que ele sabe, sente o que ele sente e só enxerga o mundo pelos olhos desse “eu”. É íntimo, mas limitado. Se um prédio explodir atrás dele e ele não ouvir, o leitor também não sabe.

 

Eu amo o fato de ter decidido falar sobre isso antes mesmo de lançar a Corte da Narrativa, porque o universo, como sempre, fez seu trabalho e me enviou vários exemplos ao longo dos dias. Essa semana, tive o encontro do meu clube do livro e lemos “Eu que nunca conheci os homens”.

 

Em um dado momento da discussão, minha colega Isa comentou que a protagonista conseguia contar as batidas do próprio coração e os passos ao mesmo tempo, o que, segundo ela, era completamente irreal, considerando que a personagem nunca havia sido ensinada nem o básico sobre o mundo. Logo em seguida, a Renata completou: haviam várias passagens em que a personagem dizia saber fazer algo muito bem, como ler rótulos, mas ela nunca havia aprendido a ler. E aí… meu cérebro explodiu.

Esse é o exemplo perfeito de que nós não podemos confiar no narrador. Se a personagem acha que sabe ler, então, na lógica dela, ela sabe. Não há ninguém ali para dizer o contrário. Ela está sozinha, sem referência, sem senso crítico ou parâmetro moral.

 

É a mesma sensação de quando eu tinha 9 anos, abria o Google, digitava “jogos para meninas” e caía naquele clássico site da Sue, todo em japonês. Sabia exatamente qual era o kanji de “play”. E quem é que podia dizer que eu não sabia ler em japonês?

 

É por isso que trabalhar como leitora crítica e editora de livros escritos em primeira pessoa é o dobro mais complicado, principalmente quando o autor é fiel à proposta do narrador. Outro ponto importantíssimo é o filtro de percepção.

 

Vamos analisar:  

“Eu entrei na casa e percebi que tinha algo de errado.”

 

Aqui, o filtro está no verbo “percebi”. Em vez do personagem mostrar o que está percebendo, ele apenas diz que percebeu, o que distancia o leitor da experiência sensorial. Esses verbos “vi, ouvi, senti, percebi” funcionam como uma camada entre o leitor e a cena, e são um traço típico da narrativa em terceira pessoa mais distante, mas que pode aparecer também na primeira, especialmente quando o autor não está atento.

Veja um exemplo em terceira:

“Luiza entrou na casa e percebeu que havia algo errado.”

Agora, compare com:“Luiza entrou na casa e seu coração saltou do peito. A sala estava completamente revirada.”

 

Na primeira versão, o leitor sabe que Luiza percebeu algo. Na segunda, o leitor sente com ela. O filtro foi removido e isso gera mais imersão. Percebe a diferença?

A primeira opção nos distancia. A segunda nos coloca dentro da cena. E quanto mais conseguimos reduzir esse filtro, mesmo na terceira pessoa, mais íntima e envolvente a leitura se torna. Agora, e quando uma história tem mais de um narrador em primeira pessoa? 

A missão aqui é ainda mais complicada, nós precisamos dar voz própria a cada narrador. Isso significa que eles precisam se expressar, observar o mundo e, principalmente, pensar de formas diferentes. Se todos os personagens soam iguais, o leitor perde a referência de quem está falando e o vínculo com a história se enfraquece.

 

Tem uma “regra” que venho tentando convencer minha autora a seguir: quando há mais de um ponto de vista, o ideal é que cada capítulo seja narrado por apenas um personagem.

Nunca misture dois POVs no mesmo capítulo, mesmo que você tenha lido livros publicados que façam isso. Nem sempre os exemplos mais populares são os melhores a serem seguidos.

Os motivos para separar POVs por capítulo são:

 

  • O leitor sabe exatamente quem está narrando e se orienta melhor no fluxo da história. 

  • Ao isolar os pontos de vista, você consegue trabalhar melhor a individualidade de cada personagem. 

  • A alternância de capítulos cria uma estrutura mais natural para mudanças de perspectiva. 

  • Trocar de mente no meio do caminho desconecta o leitor, mesmo que por uma linha. 

Não é uma regra absoluta, escrita criativa nunca irá te obrigar a fazer o que você não quer, é uma orientação que vai tornar sua história mais profissional. 

 

Um dos pontos que mais faz os escritores caírem nas armadilhas, é o monólogo interno.

 

Quando seu personagem está pensando, você não precisa anunciar o pensamento com: “Então penso em como essa gravidez vai mudar minha vida.”

 

Se estamos dentro da cabeça do personagem, não precisamos que ele diga que está pensando, o pensamento já é dele. Veja a diferença: “Minha vida acabou. Eu não estou pronta para ser mãe.”

 

Percebe? O impacto muda completamente. (o filtro de percepção aparece novamente) Esse recurso permite que os pensamentos e emoções do personagem entrem na narrativa com naturalidade, sem aspas, sem verbos intermediários e sem necessidade de itálico (a não ser em momentos muito específicos, como para destacar pensamentos muito isolados ou chocantes).  

A terceira pessoa é infinitamente mais simples, embora o narrador possa assumir diferentes graus de proximidade com os personagens. O mais comum é a terceira pessoa limitada, que foca em um personagem por vez, como se a câmera estivesse colada no ombro dele. O leitor está vendo tudo pela lente dele, compartilha suas impressões, mas não entra na mente dos outros personagens.

 

Existe também a terceira pessoa onisciente, mas ela exige muito mais cuidado. É o tipo de narrador que sabe tudo sobre todos, passado, presente e futuro e que pode contar o que quiser. Só que, se usada sem domínio, vira uma grande confusão.

 

Imagina que você quer esconder o plot twist a todo custo, mas a história é narrada em terceira pessoa onisciente, portanto, o narrador já sabe qual é o plot e todo o suspense que é feito ao longo da história se torna forçado, porque claramente você estava tentando esconder a verdade. 

 

“Ah, Thais, sinceramente, você só tá complicando a minha vida. Ninguém nem repara nisso.”

 

Repara sim. Os leitores reparam em tudo. Só que, diferente de você e de mim, eles nem sempre sabem nomear o que incomoda na leitura. Se não tiverem familiaridade com escrita criativa, vão expressar de outras formas: “Faltou emoção.” “Não senti conexão com os personagens.” “Achei que o suspense foi forçado.”  “Não entendi direito o que tava acontecendo.”

 

A terceira pessoa onisciente te dá liberdade total, você pode pular de cabeça em qualquer personagem, narrar o que ninguém sabe, prever o futuro e ainda dar opiniões sobre os fatos. Mas essa liberdade vem com a responsabilidade estrutural. Se você mostra que o narrador sabe tudo, o leitor vai cobrar coerência disso. Vai se perguntar: “Se ele sabe tudo, por que não contou isso antes?” 

 

Um suspense bem construído, por exemplo, precisa da limitação de informação para funcionar. A tensão vem da dúvida. Por isso, muitas histórias funcionam melhor na terceira limitada ou na primeira pessoa. Enquanto outras, como ficção científica ou fantasia funcionam melhor em terceira onisciente, mas tudo depende da complexidade da sua história e dos seus objetivos.

 

Eu particularmente, prefiro escrever em terceira pessoa onisciente, mas minhas histórias exigem isso porque salto entre consciências diferentes. (já jogou The Sims? É basicamente a mesma coisa, eu troco o plumbob de cabeça quando quero), mas a decisão do narrador é sempre proposital. Antes de escrever IPBG, eu testei POVs diferentes e cheguei a conclusão de que em primeira pessoa seria extremamente limitado para minha proposta, ainda mais considerando o que desejo fazer no segundo livro. No entanto, de vez em quando me arrisco a escrever em primeira pessoa. 

Trecho do meu conto “O Amor Bateu à Minha Porta”:

 

[...] O homem que eu amava pôs fim a nossa história em uma quarta-feira qualquer. Um amor que não tinha dúvidas de que seria eterno, mas não tive tempo de lutar por sua permanência. Desde então, meu mundo se resumiu a lágrimas escondidas, guerras contra meus pensamentos e uma busca desesperada por significado no que restava das memórias.

Eu não encontrei. [...] 

 

Trecho do meu romance “Injustas Palavras sobre Bondade e Guerra”:

 

[...] Acabou? — Adelina perguntou a si mesma. Então era assim que um coração partido pulsava no peito? Oculto em uma saleta abandonada, sem luz, sem ar, sem saída. Afundando-se em meio ao pó. A dor maior não era pela traição, mas sim pelo que deixariam de viver juntos. Era o egoísmo de sucumbir aos desejos mais obscuros da mente, sem sequer considerar o impacto no outro. Era renunciar às conversas, aos conselhos, ao tempo compartilhado. Ao amor. [...]

Percebe todos os tópicos que eu citei aplicados de forma diferente em cada estilo narrativo? Trouxe-os porque são trechos com um apelo emocional muito semelhante. E dá pra gente comparar que “regras” que funcionam pra um, não funcionam pra outro. 

 

Narrar é uma escolha estrutural. E, como toda estrutura, precisa de firmeza. Não existe ponto de vista “certo”, mas existe o ponto de vista coerente com a proposta da sua história. Você pode até começar escrevendo sem saber ao certo qual POV vai escolher, mas em algum momento, ele precisa se consolidar. Do contrário, você corre o risco de construir uma casa linda em cima de um terreno instável.

 

Então, se você está no processo de escrita, essa é a hora perfeita para se perguntar: meu narrador faz sentido com o tipo de história que quero contar? Ele sustenta o tom, o gênero, os conflitos? Ou está mais atrapalhando do que ajudando?

 

Te convido a revisitar os textos que você já escreveu e tentar identificar:

– Há filtros de percepção que podem ser removidos?

– Os narradores (se houver mais de um) têm vozes próprias?

– O leitor está emocionalmente próximo dos personagens, ou há uma camada entre eles? 

 
 
 

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